A indústria de alimentos para cães e gatos está constantemente evoluindo para atender às demandas emergentes do mercado pet.
Frequentes estudos são conduzidos visando a inclusão de novos ingredientes nas formulações das dietas comerciais, não apenas para atender às exigências nutricionais e energéticas, mas também para promover cuidados específicos na saúde dos animais de estimação. Vários dos ingredientes escolhidos pela indústria de pet food para compor as dietas de cães e gatos são de uso humano, em grande parte devido ao apelo natural e à crescente tendência de humanização dos pets. O cranberry é um exemplo dessa tendência, uma vez que seus benefícios são amplamente reconhecidos e cientificamente comprovados na prevenção e no auxílio ao tratamento de infecções do trato urinário em seres humanos, permitindo pesquisas sobre seus efeitos e benefícios em cães e gatos.
INFECÇÕES DO TRATO URINÁRIO EM PETS
As infecções do trato urinário (ITU) bacteriana ocorrem pela colonização de bactérias patogênicas em partes do trato ou em sua totalidade. Fêmeas e animais idosos são mais frequentemente acometidos, sendo os cães (>8 anos) mais predispostos que os gatos (>10 anos). Relatamos abaixo, alguns fatores que podem predispor o desenvolvimento da ITU nos animais:
Em condições fisiológicas normais, o sistema urinário é estéril, exceto pela presença de bactérias na uretra distal. Os patógenos frequentemente acometem o trato urinário inferior, migrando de forma ascendente da uretra distal para a vesícula urinária, eventualmente alcançando os ureteres e rins. Microrganismos patogênicos intestinais também podem colonizar o trato urinário, assim como podem ocorrer infecções através das vias hematógena e linfática. Os uropatógenos colonizadores do trato urinário são bactérias tanto Gram positivas quanto negativas. As negativas são as mais frequentemente encontradas nas infecções, sendo a Escherichia coli a principal. Estão descritos na figura abaixo os uropatógenos.
Os sinais clínicos estão associados a sintomas do trato urinário inferior, como hematúria, polaquiúria, estrangúria, disúria e incontinência, ou a sintomas do trato urinário superior, como febre, dor abdominal e piúria. O diagnóstico das ITU é realizado através da junção dos resultados da anamnese, exame físico, urinálise, urocultura e antibiograma. A urinálise considera aspectos físicos, químicos e análise de sedimento na urina. As propriedades físicas da urina incluem a avaliação da cor, turbidez, odor, volume e a densidade específica urinária. Essa última deve ser interpretada em um refratômetro óptico, importante principalmente em casos de urina turva.
A densidade urinária de cães e gatos com infecções bacterianas não é bem estabelecida, porém, em doenças concomitantes como diabetes mellitus e doença renal crônica, a densidade pode ser baixa. Dentre os achados comuns estão proteínas, células epiteliais, leucócitos e bactérias. Já nos parâmetros sanguíneos pode ser encontrada leucocitose por neutrofilia, com ou sem desvio à esquerda. Importante frisar que cães e gatos podem não demonstrar sinais clínicos em algumas das comorbidades citadas, podendo apresentar urinálise normal. Nesses casos, a urocultura ainda é recomendada. As ITU podem ser classificadas como complicadas ou não complicadas. As não complicadas são aquelas em que os animais são saudáveis e apresentam apenas a infecção, já as complicadas estão associadas com doenças concomitantes e/ou anormalidades anatômicas do trato urinário. As infecções podem ser recidivantes como também, reinfecções.
O tratamento de eleição para ITU é o uso de antimicrobianos, geralmente aqueles de amplo espectro, como penicilinas, cefalosporinas e fluorquinolonas. Porém, com o uso indiscriminado desses medicamentos e com a possibilidade de resistência bacteriana à essas drogas, a busca por compostos com efeitos terapêuticos, como o cranberry, tem se tornado frequente, potencializando e agindo como coadjuvante ao tratamento, ou até mesmo, como profilaxia.
PROPRIEDADES TERAPÊUTICAS DO CRANBERRY
O cranberry é uma planta originária do hemisfério norte, pertencente ao gênero Vaccinium macrocarpon aiton, apresentando um sabor amargo e intenso. Na indústria de pet food, é necessário considerar esse aspecto devido à sua influência negativa na palatabilidade. Uma maneira eficaz de incorporar o cranberry na dieta pode ser adicionando-o antes do processo de extrusão ao invés de suplementá-lo em pó sobre a ração, minimizando a percepção do amargor pelos animais devido ao recobrimento com gordura e palatabilizante do produto final. Esse nutracêutico também pode ser administrado por via oral, na dosagem de 20 mg/kg a cada 24 horas ou 10 mg/kg a cada 12 horas (em caso de infecção), por um período estabelecido pelo médico-veterinário ou zootecnista, sempre com monitoramento através de urinálises frequentes.
Essa planta possui flavonoides, antocianidinas, proantocianidinas (PAC) Tipo A, catequinas, ácidos orgânicos (ácido cítrico, málico, quínico, benzoico e glicurônico), carboidratos (frutose), vitamina A, vitamina C, sais minerais e água em sua composição. As antocianidinas e as proantocianidinas possuem ação antioxidante. A primeira age em algumas bactérias, rompendo a membrana citoplasmática e inibindo a atividade enzimática, enquanto as proantocianidinas (PAC) do Tipo A são responsáveis por impedir que bactérias com presença de fímbrias tipo 1 e tipo P, como por exemplo a Escherichia coli (E.coli), se fixem às células da mucosa, pois conseguem alterar a conformação dessas estruturas de forma irreversível, inativando-as. Impedindo assim, que ocorra proliferação e infecção bacteriana.
ESTUDOS CLÍNICOS:
EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS DO IMPACTO POSITIVO DO CRANBERRY NA SAÚDE DE CÃES E GATOS.
Um trabalho realizado por Nieradka (2010) demonstrou que 3-23% dos casos de gatos acometidos por doença do trato urinário inferior de felinos (DTUIF) apresentam infecções urinárias bacterianas e que, dentre esses casos, 46% são causadas pelo uropatógeno E.coli. O estudo constatou que a suplementação de extrato de cranberry, em combinação com glicosaminoglicanos, pode ter um efeito bactericida e estabilizador na mucosa da vesícula urinária. A glucosamina parece melhorar a permeabilidade da mucosa, garantindo maior integridade. Após 21 dias de suplementação em 8 gatos com cistite, observou-se uma melhora nos sinais clínicos, redução do pH urinário e diminuição no número de proteínas, leucócitos e bactérias na urina.
Por apresentar ácidos na composição, o cranberry possui propriedades acidificantes, principalmente devido ao ácido benzoico, sendo este capaz de alterar de forma transitória o pH urinário. Além disso, contribui para uma melhor digestibilidade dos aminoácidos e do nitrogênio. Esse ácido também favorece o crescimento de microrganismos benéficos, como os Lactobacillus e Bifidobactérias, promovendo um microbioma mais saudável.
Olszewski et al. (2020) avaliaram os efeitos da suplementação de 0,4% de cranberry nas dietas de cães, considerando os parâmetros sanguíneos e urinários (n=10) e a digestibilidade dos nutrientes (n=16). Os autores observaram que a inclusão dessa concentração na dieta durante 30 dias não foi capaz de alterar os parâmetros sanguíneos em relação ao grupo controle, porém houveram alterações nas características urinárias, nas quais os animais que consumiram o cranberry apresentaram urina mais clara e com melhor aparência em comparação ao grupo controle, que apresentou urina mais amarela e turva. Observou-se também maior digestibilidade dos nutrientes e menor concentração de ácido siálico fecal. Esse ácido é um dos responsáveis pela produção de muco e pela saúde intestinal dos pets, e seu excesso pode atrapalhar a absorção dos nutrientes. Assim, o uso do cranberry pode também melhorar o funcionamento intestinal.
Em outro estudo, conduzido por Biasibetti et al. (2019), foram investigados os efeitos da suplementação de um composto concentrado de cranberry em pó (35%), contendo extratos polifenólicos e rico em flavonoides, nas dietas de 10 cães com ITU descomplicada. Esses animais apresentavam sinais clínicos de cistite bacteriana, com urocultura positiva e sem tratamento prévio com antimicrobianos. Após receberem a suplementação por 60 dias, todos os cães apresentaram resultados de urocultura negativos. Além disso, houve diminuição significativa nos níveis de proteínas, células epiteliais e leucócitos, bem como melhora na irregularidade da mucosa da vesícula urinária e no seu espessamento, conforme verificado pela ultrassonografia comparativa ao início do estudo (dia 0).
O avanço dos estudos científicos comprova a importância e efetividade do uso da nutrição complementar aos tratamentos convencionais. Por conter diversas propriedades terapêuticas e benefícios à saúde, a inclusão e/ou suplementação de cranberry na alimentação de cães e gatos é recomendada, especialmente por aumentar a digestibilidade dos nutrientes, promover a saúde intestinal e pelos efeitos no trato urinário. Esse ingrediente é uma escolha interessante para auxiliar a saúde urinária, uma vez que infecções neste sistema são frequentes na rotina clínica veterinária.